Face a face
Um feixe de varas de bétula branca amarradas por cordas
vermelhas, às vezes com um machado de bronze preso a ele. As varas de bétula
significavam o poder de punir; as cordas vermelhas, a união e o absolutismo dos
que comandavam; o machado de bronze, o poder de vida e morte. Acabamos de
descrever um fasces: instrumento que,
no Império Romano, era carregado por funcionários públicos quando nobres saíam
às ruas. Eram usados para abrir caminho, para separar a multidão, separar o
povo.
Fasces, raiz da
palavra fascismo e também ponto de partida para uma triste imagem: o fascismo cria
raízes e floresce na polarização, no mais das vezes simplificadora,
reducionista, que opõe pessoas ou grupos de pessoas; isto é, o fascismo
engendra-se justo na separação, na negação da escuta, na negação da concórdia, na
negação da comunhão de possibilidades.
Pessoas e grupos que não se ouvem; pessoas que, com maior,
menor ou nenhuma consciência, buscam apenas a consolidação de seus interesses;
pessoas que frequentemente não têm a percepção da totalidade dos interesses
envolvidos; pessoas que apenas buscam derrotar o outro, realizando o exercício
da competitividade tão comum, quase naturalizado, na sociedade; pessoas que
constroem muros entre uns e outros; pessoas que trabalham ferozmente na criação
de guetos, pois acreditam em verdades perfeitas e, por consequência, dominantes,
autoritárias: fascismo, fasces em
ação.
Os funcionários que portavam os fasces – os lictores – cumprem um importante e simbólico papel neste
contexto, pois são aqueles que, trabalhando para a elite – minoria que habita o
topo da pirâmide –, ajudavam justamente na cisão entre aqueles que – maioria na
base da pirâmide – assistiam à passagem do cortejo dos nobres. A função dos lictores,
face brutal do poder, é precisa: através do uso do fasces provocavam medo, promoviam o terror, dividiam as pessoas, provocavam
cismas, criavam castas, desuniam. Trabalhando neste sentido, os lictores
alcançavam privilégios para si mesmos; porém, mais que tudo, escondiam o
próprio medo.
Enquanto isso, também temerosas, ameaçadas, assustadas, a imensa
base cindia-se, fragilizava-se, construía muros entre seus pares. Porém, seguia
cumprindo o papel de sustentação dos que sobre elas organizavam seus poderes –
podres mas eficientes poderes –, pois, estes inumeráveis muros, em sua junção
labiríntica, revelavam-se ainda mais fortes como base de sustentação para o
diminuto povo do topo da pirâmide que, assim, se mantinha em seu privilegiado
posto de observação e comando.
O que mudou deste os tempos descritos aí em cima para os
tempos de hoje? Talvez, essencialmente, nada. O cenário por certo é diferente;
a tecnologia avançou incrivelmente; o número de pessoas aumentou também espantosamente;
porém, talvez apenas uma sofisticação do modelo foi se formatando ao longo dos
tempos: fasces, hoje, são sobretudo o
poder econômico e o poder da mídia.
Hoje, quem está no topo da pirâmide? As grandes corporações
e o sistema financeiro. E esta, talvez, seja a única constatação segura, pois,
em tempos de globalização, não nos transformamos em uma “aldeia global”
partilhando amor, saberes e riquezas; o que, de fato, compartilhamos é a
estrutura do acúmulo e do consumo.
Há algum tempo, escrevi um texto chamado “O Muro e o
Dinheiro”. Hoje, vou me permitir retirar alguns parágrafos deste texto e
inseri-los neste “Face a Face”: “Como em qualquer processo de construção de
estruturas defensivas, também o dinheiro foi, a princípio, protetor da
existência humana: prestava-se para viabilizar a troca de serviços,
habilidades, ou conhecimentos, muitas vezes necessários à manutenção da
existência. Como brincou o cineasta Jorge Furtado, em A Ilha das Flores, o
dinheiro facilitava a troca, antes impossível, de galinhas por baleias.
Contudo, à medida que suas qualidades originais eram esquecidas, seu uso
ganhava uma oculta segunda intenção. Com a segunda intenção, oculta, organizava-se um peso
escravizante, compulsivo. Esta segunda intenção era, justo, a pretensa garantia
através do acúmulo do excedente: a existência garantida – pretendia-se! –
através do acúmulo de recursos. Uma estrutura defensiva, oculta, ambígua, ia
ganhando forma, não mais protegendo seus construtores.
A função primária da pequena moeda, portátil, – a troca –,
sua natureza genuína – a partilha de habilidades, de serviços –, ao final de um
processo, jazia esquecida, escondida sob o peso da escravidão do acúmulo que
“garante”, da compulsoriedade do acúmulo e de seu primo-irmão, o consumismo – a
busca da existência “garantida”. Para possuir o excedente que “garante” a
“vida” é necessário adquirir este excedente, e, para adquiri-lo é necessário
possuir um excedente de dinheiro.
O dinheiro não representa mais a
possibilidade de troca de habilidades, de conhecimento transformado em serviços
e objetos úteis a muitas pessoas. Representa a impossível garantia. Ganância instituída.
Desta maneira o dinheiro sofreu uma profunda metamorfose: de
moeda de troca a instrumento de poder. Ilusório poder, é fato, mas, sentido
como real através da sensação da garantia que o excedente pretende oferecer.
Migrava-se das possibilidades para o poder
imperativo, dominante.”
O que se disputa, no pano de fundo, é o controle do poder
econômico ao qual todos estamos submetidos, pois, qualquer mãe ou pai condena
seu filho ou filha à morte se não ganhar o mínimo de dinheiro para suprir suas
necessidades mais básicas: comer, beber. E milhões de pais e mães não ganham
este mínimo de dinheiro.
O exagero de acúmulo por
parte de uns poucos faz com que muitos, a imensa maioria de seres humanos,
necessitem oferecer, para conseguir a manutenção básica de seus filhos e filhas,
sua força de trabalho usada em empregos produtivos ao sistema; não conseguem,
no mais das vezes, oferecer sua vitalidade maior para a criação de um trabalho
pessoal, assinado – feliz e prazeroso.
A dimensão humana, e a
própria rede da vida, está sufocada pela lógica perversa e irracional de
acumulação, do capital que não se importa com o bem-estar e a felicidade de
cada um nesta rede. O dinheiro, de meio para a satisfação de necessidades e de
desejos, converteu-se em finalidade em si, pois, atrás do dinheiro, esconde-se
a ilusória conquista de estabilidade, de felicidade, de saúde. De um
modo ou outro, todos estamos envolvidos pela lógica do sistema.
Contudo, brechas se abrem, e, atentos, temos a possibilidade
de descobrir o truque do ilusionista. Podemos investigar como se arma este
truque que, ao fim e ao cabo, parece determinar o destino de todos.
Uma dessas brechas: somos nós, seres humanos, que elaboramos
o truque. Ninguém mais, nós mesmos. Porém, nós, os ilusionistas, acreditamos tanto
no truque que agora estamos iludidos, cegos, presos no truque. O truque,
transformado em armadilha com o passar dos anos, está em cada um, não fora, não
no sistema! O sistema não tem vida própria, nós o alimentamos, cuidadosamente,
dia após dia. Alimentamos e esquecemos suas raízes, esquecemos porque criamos o
truque e o repetimos compulsivamente.
Esquecemos porque queremos esquecer o medo da instabilidade,
da ausência de garantias, o medo da interdependência, o medo da impermanência;
quisemos, e seguimos querendo, negar o inegável. Assim, construímos a armadilha
e esquecemos onde guardamos a chave da gaiola de ouro, do “habitáculo duro como
aço”¹ – ricos condomínios-guetos ou favelas-guetos –, estruturas onde todos são
igualmente prisioneiros, todos enjaulados.
Finalizando, quem são os lictores nos dias de hoje? Resposta
direta e reta: qualquer um que trabalhe com a intenção de dividir, de quebrar a
integração, de construir um sistema guetificante, sistema de castas, de
privilégios para alguns, de fartura não solidária, de escassez também não
solidária. Os lictores, hoje, estão potencialmente em toda parte, desde a
direita até a esquerda do leque social.
Cada um deve, antes de tudo, buscar em si a raiz de sua
atitude, de sua ação, pois a chave do “habitáculo duro como aço” está com cada
um – o sistema, nem nenhum sistema, possui esta chave. Não importa a que grupo
um se associe, dentro deste grupo cada um pode ser mais ou menos agregador,
mais ou menos atento ao que os outros falam. Cada um precisa conhecer a si
mesmo, colocar-se face a face consigo mesmo, esclarecer se pretende empunhar
sua fasces e usá-la contra o outro – o
que é o mesmo que contra si mesmo, pois a fasces
separa, apenas separa – ou se pretende depor esta arma.
Como bem disse meu amigo Ademar, o Mestre Dema, “existem variadas
qualidades de presença, e de ação, em qualquer sistema”. Que cada um se coloque
face a face consigo mesmo e responsabilize-se.
¹ - A expressão alemã stahlhartes Gehäuse,
traduzida como “habitáculo duro como
o aço” ou “jaula de aço”,
foi utilizada por Max Weber.
Alexandre Cavalcanti
Médico-educador na Vila-Escola Projeto de Gente
(este texto reflete uma opinião pessoal)
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