Lendo o prefácio do livro de Zygmunt Bauman, “Modernidade e
Holocausto”, me assombrei com uma certa correlação que penso ter percebido ali.
Não à toa demorei para tentar escrever sobre ela.
Logo no início de seu texto, Bauman fala sobre sua esposa
que, durante dois anos, escreveu sobre a experiência de ter vivido no gueto de
Varsóvia e também comenta o agradecimento que ela lhe fez por ter suportado sua
ausência durante o tempo em que reviveu aquele mundo “que não foi o dele”.
Bauman, de fato, escapou do horror: “Com efeito, escapei (...) e, como muitos
de meus contemporâneos, nunca tentei explorar (este mundo) depois que
desapareceu da face da Terra, deixando-o ficar na lembrança assombrada e nas
feridas jamais cicatrizadas (...)”.
Porém, podemos perceber que, se ficou na lembrança, não
desapareceu; mais ainda, ficou e assombrou aquele homem. Tornou-se um fantasma
– e fantasmas, vale lembrar, são imortais e cada vez mais assustadores por isso.
Ali estava presente um ativo e real fantasma; um fantasma que toca em “feridas
jamais cicatrizadas”. Fantasma que assombra, atormenta, a alma, o corpo, a
vida, não apenas daqueles que foram atingidos naqueles tempos. Atinge a todos
nós, pois o Holocausto foi construído por seres humanos e, portanto, diz respeito
aos seres humanos, a todos os seres humanos, a cada um.
Talvez este fantasma tenha uma outra função. Talvez ele seja
uma face do daimon grego: a entidade que, incorporada em cada ser humano, não
permite que este esqueça o que precisa ser vivido, o que é essencial,
necessário, para que este ser se sinta em paz. O daimon é o guardião do mundo
inconsciente, desconhecido e a ser reconhecido. A missão do daimon é justo
manter as feridas abertas, manter a dor viva, dor a ser cuidada, cuidada até que
a cicatrização aconteça. Mas, até que isto aconteça, muitos curativos serão
necessários na limpeza diária do ferimento que deve, portanto, ser tocado, e
tocado, e tocado, cotidianamente, até que, pouco a pouco, se torne menos
doloroso e então cicatrize.
Bauman segue seu texto fazendo uma simples e muito profunda
metáfora: “(...) minha imagem do Holocausto era como um quadro na parede: bem
emoldurado para fazer a separação entre a pintura e o papel de parede e
ressaltar como diferia do resto da mobília. ”
Pois bem, e aqui está a correlação a que me referi, a mim
parece que no mais das vezes, quando falamos sobre educação, fazemos a mesma
imagem: um quadro no qual pintamos textos sobre o processo de aprendizagem das
crianças, sobre produção de conhecimento, saberes, sobre pedagogia enfim ("paidos"
– da criança – e "agein" – conduzir –, vale lembrar), mas cuja
moldura separa, guetifica, a criança do processo natural da vida, do processo
natural de conhecer a si mesma. E um holocausto segue em andamento.
Bauman, mais adiante, revela que a partir de certo momento
constatou que o “Holocausto era uma janela, mais do que um quadro na parede”, e
que, “olhando por essa janela, pode-se ter um raro vislumbre de coisas de outro
modo invisíveis. ”
O que está mantido invisível no quadro da pedagogia enquanto
não o vemos como janela? Minha resposta: a criança viva, a criança única, a
criança pura, “a Criança Nova que habita onde vivo (e que) dá-me uma mão
a mim e a outra a tudo que existe. E assim vamos os três pelo caminho que houver
(...). A Criança Eterna (que) acompanha-me sempre. A
direção do meu olhar é o seu dedo apontando”, como, poetizando a resposta,
cantou Fernando Pessoa. O que está invisível, desconsiderado, é a criança que
ensina a nós adultos a direção que devemos tomar, os cuidados que devemos ter
para com elas.
Beatriz de Paula escreveu: “Invertem-se os papéis: às crianças, e
não mais aos adultos, atribui-se o cuidar da humanidade. Perdemos o prumo e a
capacidade de encontrá-lo”. Concordo, e muito.
Uma grave
questão então se impõe: como vamos ajudar as crianças se estamos, adultos,
educadores e educadoras, encouraçados, defendidos, com nosso prumo perdido?
Como vamos interromper o holocausto?
Quem já viveu
a experiência – consigo mesmo ou junto a um amigo ou amiga em empática
solidariedade – de tentar romper um vício, uma adicção, sabe que, em vários
momentos, não há o que fazer exceto estar ao lado, pois a decisão, a luta contra
a fissura, está nas mãos de apenas um: o adicto. Ninguém pode fazer por ele o que
apenas ele pode fazer – e ainda bem que seja assim, pois, de outro modo, esta
pessoa estaria para sempre na absoluta dependência do outro e a vida estaria
rompida de todo modo, pois ela, a vida, se organiza na interdependência. Para
ser na rede da vida temos apenas uma coisa a fazer: oferecer o ser que apenas
cada um pode ser.
Quando um
adulto conduz uma criança – que é o que, escondido, a pedagogia pede – está, ao
fim e ao cabo, ensinando uma terrível lição: você é quem eu desejo que seja,
você é o que eu ensino. Porém, o adulto é – deveria ser – apenas aquele que tem
a possibilidade de tentar manter a existência, não o ser, de uma criança; este
adulto deve estar atento, extremamente atento, ao fato de que esta
possibilidade – tentar manter a existência de uma criança – dota cada um deles
de imensos poderes sobre a criança. A criança sente isso, sabe disso e, justo
por isso, se entrega aos cuidados dos adultos. Ela sabe, em profundos recantos
de seu ser, que para estar viva, para ter a sensação de existir, depende deles,
dos adultos.
Esta sensação
de existência, tão necessária, de fato instintual, pode, em algum momento,
fazer com que uma criança aja de uma maneira que, de verdade, não gosta, uma
maneira que, de verdade, não deseja. Age assim, pois, a ameaça da
não-existência assusta, dói, dói muito, assusta muito, dói tanto que faz com
que ela seja capaz de escolher opções que, de outro modo, não escolheria, mas o
faz para manter a ameaça afastada. Faz então, e muitas vezes, o que não quer, o
que não concorda, pode até mesmo esquecer o porquê de, um dia, ter feito esta
escolha, pode até mesmo se viciar nessa ação, agora transformada em (re)ação.
Contudo,
sempre terá a chance de reorganizar este estado e recuperar sua autonomia.
Então, assim
estamos organizados: adultos, que um dia foram crianças, viciados, esquecidos
de si mesmos, reativos, robotizados, anestesiados, constroem uma sociedade à sua
imagem e semelhança, e conduzem as crianças, naturalmente – triste
naturalidade! –, ensinando a cada uma delas como manter em funcionamento esta
sociedade viciada, reativa, robotizada, anestesiada.
Pois bem, aparentemente
chegamos a um beco sem saída. A doença é grave, talvez terminal, os sintomas
sociais, ambientais, são claros e inquestionáveis.
Quando
chegamos a um beco sem saída só nos resta lembrar que existe a entrada, agora
única saída, e apenas uma possibilidade se faz presente: enfrentar os fantasmas
que nos assustaram, assustam, e nos fizeram caminhar até onde chegamos. Não há outra
alternativa.
Está mais que
na hora de tentarmos, nós adultos, recuperar nossa autonomia – dura e
trabalhosa tarefa, um trabalho contra uma adicção e suas possíveis e prováveis
recaídas.
Conclusão: cabe,
portanto, a cada um – e apenas cada um – buscar em si mesmo a ferida que nunca
cicatriza, trazer à tona a dor que, não cuidada, nos leva a construir
estruturas holocaustícas.
Alexandre Cavalcanti
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