Antes de tudo, gostaria de manifestar que percebo a educação como algo plural. Não vejo a possibilidade de falar em educação como algo que parte de uma pessoa específica – o educador –, e afeta o educando de modo simples e unilateral. É uma relação humana, e sendo assim é algo complexo, profundo, múltiplo que envolve afetos, memórias, emoções e expectativas de todos os envolvidos.
Mesmo assim, nas relações
educacionais escolares é dada especificamente aos adultos a incumbência de
cuidar das crianças que ainda não sabem se relacionar com os perigos da vida, sejam
eles físicos, mentais, emocionais ou espirituais. Mas quais são esses perigos?
Ainda convivemos com a
expectativa social de educadores “prepararem as crianças para o mundo lá fora”:
cruel, desumano, violento, competitivo... Essa visão reflete uma angústia humana
associada à noção de tempo que engloba experiências passadas, expectativas e
medo do futuro. Esta mesma angústia está ligada à ilusão de segurança, refletindo
a crença de que prever determinadas situações e tomar atitudes visando estar
preparado para enfrentar as situações imaginadas com base no conhecimento
adquirido de experiências passadas torna-nos mais fortes, poderosos,
bem-sucedidos e privilegiados em relação às situações da vida. Vida futura.
Alheia. Inventada. Impossível...
Ao vislumbrar que o mundo
trará invariavelmente essas experiências, esquecemos que o tal mundo lá fora é
formado por pessoas, por todos nós e que se ele está assim é porque as pessoas,
que somos nós, portam-se dessa maneira. Somos então levados a estabelecer
relações baseadas na competição e desconfiança, a fim de buscarmos nos safar
dos perigos do mundo lá fora, prevendo-os.
Essa postura defensiva nos
faz a princípio vitimas potenciais do mundo e impede as belezas de nos
preencherem, pois nosso mundo interior está sempre coberto com o véu da
desconfiança, do medo, da busca por uma posição segura dentro do mundo lá fora.
Nosso mundo aqui dentro fica à mercê das suposições e quase nunca é encarado,
porque afinal o mundo lá fora traz perigos sem fim e o mundo aqui dentro não
parece ser tão importante para nossa sobrevivência. E é nisso que eu vejo maior
perigo: Esse mundo de dentro acaba sendo encoberto pelas aflições conectadas
com o dia de amanhã e suas infinitas possibilidades incalculáveis e
inalcançáveis.
Mas sem olhar para os dois
mundos: lá fora e aqui dentro, não há como saber se quero reproduzir ou não
esse sistema social. E ainda, será que esse mundo lá fora é só isso mesmo? Será
que não estamos destreinados pra olhar as outras infinitas possibilidades não
duais que ele oferece?
É curioso pensar que uma
instituição, seus profissionais e pais de crianças construam a sua rotina,
realizem as escolhas daquilo que será vivenciado pela criança com base em
especulações imaginativas totalmente alheias à realidade, necessidade e
interesses presentes da criança, olhando com medo e ganância para o “mundo lá
fora” e negligenciando o “mundo aqui dentro”, presente, vivo, pulsante,
vibrante e fluido. Assumidamente perecível e fugaz.
Os perigos dos quais a
educação da criança para o futuro busca livrá-las são monstros invisíveis que
habitam o sótão mental da humanidade. Enquanto estamos preocupados em, sonhando,
inventar como enfrentar monstros imaginários, a pulsão vital dos seres fica à
parte e sem receber atenção. A vida que ocorre agora, plena de policonexões e
encontros, fica em segundo plano a fim de resolvermos nossos quebra-cabeças do
que virá a ser esse Ser-criança que a princípio se apresenta e aos poucos se
enreda na teia de projeções futuras deixando-se cada vez menos ser visto ou
revelado, inclusive por e para si mesmo. É para este mundo que acredito ser essencial
olharmos agora e auxiliar as crianças também a criarem e descobrirem
ferramentas, e utilizá-las para uma vida de momentos presentes relevantes,
vivazes, verdadeiros.
No mundo aqui dentro também
são carregadas memórias e as opções que temos sobre o que fazer com elas; temos
projeções e relações e muitas vezes não sabemos que é possível escolhermos como
agir – não simplesmente reagir – em relação a isso tudo que se apresenta de
dentro de nós buscando interagir com o mundo exterior, porém não como algo
alheio. Não atropelando a consciência e plenitude da relação com seu mundo
interior em prol de uma promessa de sucesso ou sensação de segurança, por medo
do mundo lá fora, no futuro ou dentro de outro ser, sobre o qual é impossível
termos qualquer controle real.
Reconhecer a importância do
mundo interior e do momento presente nos dá autonomia e revê a nossa
vulnerabilidade, aceitando-a. Podemos esquecer as garantias, reconhecendo que
elas não existem, e assim se faz desnecessária a busca por privilégios
quaisquer e podemos nos entregar de todo coração e com toda a vida para
relações de solidariedade e amor, onde todos aprendemos uns com os outros a
sermos melhores para nós e para a parcela de nós que vive do lado de fora, que
compreende o mundo e nossas relações.
Ouvimos a premonição apavorada
de pais, mães e tutores dizendo “Lá na frente, lá fora, ele vai se deparar com
as mazelas e se não for apresentado a elas empiricamente não saberá o que fazer”.
Me nego a acreditar que seja assim. O tempo todo estamos expostos às mazelas e
maravilhas aqui de dentro e comumente nem olhamos pra elas. Ao ocuparmos
conscientemente nosso corpo, nossas emoções, atitudes, pensamentos e ações,
mais livres e fortalecidos seremos para lidar com o que quer que se apresente a
nós do lado de fora, pois saberemos resolver a relação entre o que está fora e
está dentro antes de reagirmos e reverberarmos mais dores e tristezas para o
mundo.
O mundo lá fora tenta se
ocupar do que virá, do que fazer com o futuro, das escolhas mais acertadas para
serem tomadas com a vista em suas possíveis consequências vindouras. Mas as
questões efetivas são colocadas para serem resolvidas agora, todos os dias, em
todos os agoras em que vivemos, e nesses agoras vivenciamos emoções, mas
dificilmente sabemos o que fazer de positivo com elas, diferente de
sentirmo-nos culpados por “escolhas erradas” do passado ou orgulhosos com as
“escolhas certas”. Não nos é ensinado como estar em paz.
Enquanto educadora,
sinto-me motivada a priorizar o contato com o misterioso e importantíssimo
mundo aqui dentro de cada um, a começar pelo meu próprio. Na verticalização do
contato consigo podemos aprofundar todas as nossas relações e estarmos atentamente
presentes no mundo, trazendo para ele aquilo que nós escolhemos
conscientemente, esculpindo um mundo pacífico e solidário, onde todos ganham
juntos e não precisam ser reconhecidos por serem melhores que ninguém em
qualquer quesito; um mundo no qual possamos estar em paz compartilhando aquilo
que nos motiva, interessa e aconchega o coração.
Marina
março de 2016
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