Um passeio pela curta,
curtíssima, história da Vila-Escola Projeto de Gente, em Cumuruxatiba

Sete anos de trabalho em
Cumuruxatiba. Doze anos desde um primeiro lampejo de ideia. Pouco tempo, sei,
porém, o suficiente para despertar o desejo de registrar reflexões,
acontecimentos e emoções ocorridos ao longo destes anos. Pouco tempo, sei, mas,
o que é o tempo quando mergulhamos na paixão, na utopia real que nasce e se põe,
todos os dias, atrás do horizonte? O que é tempo para o que vive – real – nos
sonhos de cada um?
Assim, vamos para 2002, talvez abril.
Um grupo de pessoas se reuniu para conversar sobre uma ideia. Uma ideia que
surgiu, um tanto misteriosamente, em uma fazenda do litoral do Rio de Janeiro,
Jaconé, – fazenda de uma querida amiga. Para mim, este foi um ano trabalhoso,
de difícil lida, frustração e tristeza.
Na boca da noite, sentado debaixo de
uma árvore, à beira de um pequeno lago, um pensamento – de fonte homeopática,
saudável nascente – emergiu. Puxando a memória daquele momento, pensei, mais ou
menos, assim: “muito se diz que nosso organismo funciona melhor, é mais
saudável, quando estamos bem com a gente mesmo. Pesquisas são feitas, por
exemplo, com o sistema imunológico. Pesquisas científicas, aceitas pela
comunidade dos médicos”.
Mas, o que é estar bem com a gente
mesmo?, segui pensando em doses homeopáticas: “Talvez possamos dizer que
estamos bem com a gente mesmo quando somos respeitados em nossos anseios mais
profundos, respeitados em nossa sensibilidade pessoal, em nosso ritmo. Felizes.
Bem com a gente mesmo. Felizes! Então, podemos dizer que somos mais saudáveis
quando estamos mais felizes”. E pensei mais um pouquinho: “Muito se diz, mas
pouco se faz, de verdade, para sermos, de verdade, felizes, saudáveis. Mais
grave ainda, somos, desde pequeninos, convidados a esquecer dos nossos próprios
anseios para corresponder a outros, ditados por outras pessoas. Somos
convidados a esquecer quem somos, esquecer a fonte de nossa felicidade, somos
convidados à infelicidade e à doença”.
Ali, na Fazenda Novo Horizonte,
surgiu, então, a ideia de construir um lugar que nos convidasse a ser quem
somos, que convidasse os pequeninos a ser quem são, livres, atentos a si e aos
outros. Um lugar de bem estar, autoconhecimento, saúde.
Voltando ao Rio de Janeiro, escrevi
um pouquinho sobre isto e convidei alguns amigos para conversar a respeito. Deste
encontro resultou uma proposta de trabalho: o Projeto de Gente, “um campo de
atendimento e real atenção, respeito e cuidado a crianças e jovens”. Um lugar
onde os corações e as mentes de todos os adultos estarão, permanentemente,
abertos para ouvir os sinais que expressam um mistério que está inscrito em
cada um de nós,... “a particularidade que você sente que é você”, como ensinou
J. Hillman, pois nascemos já sendo quem somos, antes mesmo de poder ser quem
somos.
Belo mistério que qualquer um pode,
com coragem, perceber em si mesmo. Qualquer um, com um pouco de atenção, pode
perceber uma linha – infelizmente muitas vezes bem escondida, frequentemente
negada até ser esquecida –, uma linha que conduz a uma fonte individual,
intransferível e profundamente legítima. Fonte arquetípica, pura: EU SOU...,
sou quem sou!
Pois bem, naquele 2002, passamos a
nos reunir, uma ou duas vezes na semana, para conversar sobre o assunto. Éramos
trabalhadores de variadas formações e habilidades – professora, professor,
arquiteto, engenheiros, artistas, advogado, cozinheiro, padeiro, médico,
desenhista, etc e etc...
Em 2005, conhecemos uma filosofia de
trabalho conhecida como “Escolas Democráticas” ou “Pedagogia Libertária”.
Descobrimos, ali, uma grande afinidade de princípios. O pessoal do Projeto de
Gente também considerava que uma estrutura – libertária, democrática – seria a
mais adequada para ajudar na caminhada em direção à meta pretendida – o EU
SOU... Percebemos isso por um simples motivo: democracia se faz através da
livre manifestação de cada pessoa envolvida em um processo.
Conhecíamos, ainda incipientemente, nosso
mote: “Liberdade total!, solidariedade total!” (Malatesta) – uma boa bússola
para uma comunidade criativa, saudável e feliz.
Por conta do curso, começamos a
imaginar uma escola: a Escola Projeto de Gente. Porém, não tínhamos recursos
para iniciar o trabalho efetivo – não tínhamos recursos nem para o Projeto,
quanto mais para a escola!
No início de 2007, um amigo nos
ofereceu, inesperadamente, uma casa para começar. Uma casinha no sul da Bahia,
a 1000 km do Rio de Janeiro! Outro inesperado: 1000 km de onde imaginávamos. Porém,
visitamos a Vila de Cumuruxatiba em fevereiro deste ano e, em maio, mudei-me.

A casinha do Cantagalo
Começamos, na Vila, um trabalho local
de divulgação de nossas ideias. Uma fase que durou cerca de três meses e
resultou na formação de um pequeno time de pessoas disposta a oferecer
trabalho, conhecimentos, habilidades e amor.

encontros, encontros...
Em agosto de 2007, o trabalho iniciou-se.
Era o Projeto de Gente, finalmente, ao vivo e a cores, nosso desejado espaço
que sempre será um “campo para que as crianças tenham a mais ampla
possibilidade de conhecer e respeitar a si próprias e àqueles que as cercam”.

baiana sombra...

oficinas pé no chão...

mais pés no chão...

canhotos e destros... harmonia...

o canto do coração de cada um...

um cantinho sempre bonito...

as primeiras rodas (a gente não esquece!)...

primeiras oficinas...

lentamente os espaços são
preenchidos... reutilização e reciclagem...
Uma observação é necessária: ao
chegar em Cumuruxatiba, encontramos as três escolas municipais funcionando
através do trabalho de algumas pessoas muito dedicadas. Sentimos, então, que
trazer uma proposta pedagógica alternativa seria, naquele momento, uma arrogância,
algo como: “Ôxe, mais um que chega apontando uns caminho que a gente não
conhece! Calma, meu rei!”. Por isso, começamos com o Projeto de Gente, não a
Escola Projeto de Gente. Percebemos que deveríamos, primeiro, limpar nosso
terreno, roçar a horta, mostrar a semente, falar do fruto, conversar,
conversar, conversar, semear e apenas então oferecer. Por isso, meses de bate-papo
sobre o Projeto de Gente: na minha casa, na casa de quem convidasse – e
convidaram! –, na praia, na rua, as escolas, onde fosse possível.
2007 a 2011: ao longo destes 4 anos
de atividades algumas constatações tornaram-se bem nítidas. Resumindo muito: (1)
a imensa falta de costume das crianças serem ouvidas. Realmente ouvidas. Isto aparecia em uma postura ora tímida ou
desinteressada, ora agressiva, ora esquiva, durante as rodas; (2) o descrédito delas
quanto à possibilidade de serem ouvidas; (3) a falta de hábito de participar de
decisões que dizem respeito a elas mesmas; (4) a dificuldade dos adultos
ouvirem – e realmente considerarem –
as crianças; (5) uma grande flutuabilidade na presença das crianças no
cotidiano do trabalho por conta de diversas circunstâncias (as mais comuns:
obrigações em casa – cozinhar, limpar, cuidar dos irmãos menores, vender o
peixe pescado pelos pais, colher mandioca –, pais e mães que puniam seus filhos
com a proibição de irem ao Projeto, etc). Esta flutuabilidade dificultava a
dinâmica democrática que exige, acima de tudo, participação, presença, a livre manifestação
de cada um, de quem desejar, e, claro, o foco primordial do trabalho – a
observação do processo de individuação, isto é, a caminhada de cada um ao
encontro de si mesmo – também ficava muito prejudicada. Cinco tristes pontos.

mas, milagres existem!... nunca faltou o lanche!...
Neste período aprendi a conhecer a
precoce defesa das crianças. Muitas vezes falamos da pureza das crianças, não é
verdade? Entretanto, acho que deveríamos falar de sua pureza escondida, escondida pela necessidade de se defenderem de um
ambiente pouco acolhedor de suas sensibilidades pessoais, severo, contaminado
pela defesa de adultos que se recusam a retirar suas próprias máscaras e
mostrar seus verdadeiros rostos – rostos sensíveis e assustados,... puros.
Adultos que se esqueceram de sua fonte pura e original, que desobedecem a si
mesmos, que não são quem verdadeiramente são, que têm medo de recuperar sua
identidade, que preferem seguir infelizes e doentes, tentando o impossível:
construir uma ilusória sensação de garantia.
Foi aí que apareceu uma pedagoga, com
experiência com crianças pequenas. Até então, a gente aceitava moçadinha acima
dos 7-8 anos. Depois de muita conversa, ida a São Paulo, foi proposta uma turma
de pequenos – crianças de 3 a 6 anos.
Foi assim, amigos, que brotou a
Vila-Escola Projeto de Gente. Nasceu com os pequeninos. Nasceu e apenas
engatinha.

muito bem vindos!!!...
2012 a 2014: amigos, a
Vila-Escola é um lugar onde a democracia é exercida cotidianamente. Um lugar onde
acontece, com imensas dificuldades, o que uma turminha escreveu para a
apresentação de um teatro para a comunidade: “Aqui, na Vila-Escola, ninguém manda em ninguém.
Todos combinam o que é o melhor para todos. Isto dá muito trabalho. Às vezes a
gente até cansa de tanta conversa que é preciso ter pra acertar as combinações.
Mas, vale a pena porque, lá, não tem nem oprimido nem opressor. É uma pena que
na sociedade dos adultos tem muito disso aí: opressão”.
A V-E é um lugar
onde temos a oportunidade de acompanhar a jornada de cada um dos meninos e
meninas em direção ao projeto de gente que cada um traz,
misteriosamente presente, dentro de si e que merece – precisa – ser
(re)conhecido, livremente desenvolvido e, deste modo, integrado à rede da vida.
Falamos Vila-Escola, mas não somos
uma escola, somos uma experiência de educação comunitária, democrática e
libertária. Não somos mas desejamos ser; e por um simples motivo: queremos
estar mais tempo com as crianças que, por enquanto, vão à Vila-Escola no contra
turno das escolas tradicionais. A formalização permitirá que as famílias
escolham a Vila-Escola sem receio de impedirem, na sequência de estudos, uma
rota de conhecimento para seus filhos e filhas.
Nos últimos anos um importante passo
foi dado: a V-E aproximou-se da rede de pessoas e instituições voltadas para a
busca de alternativas para a educação. Participamos de encontros de escolas
democráticas, em Sampa; fomos convidados para a CONANE, em Brasília – um
encontro nacional, onde apresentamos as nossas ideias, possibilidades e
limitações. Em Cumuruxatiba foi realizado um destes encontros encontro. Uma
honra e uma responsabilidade.

E assim o Projeto de Gente chegou aos
sete anos de atividades. Sete anos completos.

teve “parabéns pra Vila-Escola”!...
Na última semana vivi emoções lindas
que desejo também partilhar com todos que se animaram a chegar até aqui neste
relato.
Na roda – pois, desde seu início, o
Projeto de Gente tem, semanalmente, pelo menos dois encontros onde a livre
manifestação e o voto são direitos de todos, sem distinção de idade ou função
–, na boa e velha roda, dizia, resolvemos comemorar os sete anos com sete dias
de festa.
Assim foi!
2ª feira: pic-nic na praia –
brincadeiras no mar picado pelo vento sul, maré alta, alegria também e a mesa
se fez, solidária, farta, linda! Bolos, pães feitos em casa, sucos,
salgadinhos, pastinhas vegetarianas, cocadas e paçocas.

mar batido...
3ª feira: filme no telão na casa de
amigos – “A História Sem Fim” – uma premonição?
4ª feira: contação de histórias e
causos – apareceram lobisomens, boitatás, curupiras, seres encantadores
contando histórias de seres encantados.

e aí, o lobisomem...

apareceu lá atrás!...
A 4ª feira seguiu com a Culinária
Primitiva – uma linda amiga, angolana, maravilhosa chef, nos ofereceu um
verdadeiro banquete feito na fogueira. Aliás, as crianças construíram – projeto
delas – um pequeno fogão de argila que fez fogo mais alto que o dos adultos.
Fogão com chaminé, proteção ao coqueiro e tudo mais!

o fogão feito pelos
pequenos...
Dali, e do fogão dos adultos, saíram
berinjelas cozidas, jilós – que os que gostam do amargo existem e precisam ser
contemplados! –, inhames, cenouras com iogurte, tomates e pepinos temperados,
duas abóboras-morangas deliciosas, docinhas, e um misterioso franguinho que não
acabava nunca! Claro que a brincadeira rolou solta na Vila-Escola iluminada.

o fogão dos grandes...

abóbora, batatas,
cenouras... em fogo baixo... e gostosura alta...

e tem hora que só quem
sabe de verdade põe a mão...
5ª feira: sarau. No sarau: risadaria
sem fim, poesia, música, viola, flautas

flautistas do agora...

contadores de histórias
encantadas...
Teatro de fantoches – peça escrita
pela moçadinha com sucesso total! Risos e muitos aplausos!

fantoches divertindo a
gente!...

essas são boas pessoas!!...


bastidores!...
Teatro de sombras com figuras
recortadas e gente em carne e osso! Sucesso total! Emocionante!

sem legenda...

bicicletas e colibris...

alguma pergunta?...
sem palavras!... 

Teatro de veteranos – uma moçada que
frequentou o Projeto há 4 anos remontou uma peça baseada em canções de Chico
Buarque. Emoção plena! Tinha gente do início do Projeto, 2007. Imaginem ver,
ali, um pessoal que tinha 10, 11 anos, agora com 14, 15, 17! Chega doer o
coração de tanta alegria e emoção!

temos veteranos!...

cenas fortes!...

um grande amor está nascendo nas mesas do bar!...
E a festa seguia com queridos amigos
cantando, tocando, fazendo a festa e a Vila-Escola!

pais, mães, amigos, fazem música... linda!...

presença importantíssima para nós!... mães e seus
sorrisos!...

o Vozeria, com muita gente da Vila-Escola...
Ah!, ainda falta uma festa do pijama,
seria 6ª feira, mas o santo forte do Projeto conseguiu adiar para uma data a
ser marcada. Santo forte porque os educadores estavam completamente felizes,
mas, povo véio, exaustos, nutridos e exaustos!
Agora, resta apenas agradecer,
agradecer, agradecer! E reafirmar meu – sempre – renovado entusiasmo!
Grato! Mil vezes, grato!
Beijos, mil beijos,
Alexandre
Vejam as fotos e vídeos no blog e no
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