Direto ao ponto: quando
dizemos que uma criança é legal, bacana, estamos, no contraponto, dizendo que
outra não é legal, não é bacana. Neste momento, estamos fazendo um julgamento –
muito provavelmente, fundado em nossos próprios sentimentos, sensações,
vivências – e realizando uma escolha; isto é, preferimos este àquele, o “legal”
ao “não legal”.
Naturalmente podemos nos sentir mais afinados com certas qualidades de uma
pessoa do que com as de outra. Assim, alguém pode se sentir mais confortável
entre os introspectivos, quietinhos, enquanto outra pessoa se sente melhor
entre os extrovertidos, irrequietos. Entretanto, não podemos perder de vista
que estes não são melhores do que aqueles.
Também não podemos perder de vista que a extroversão ou a introversão (apenas
para seguir no exemplo escolhido) é também uma escolha – muitas vezes
inconsciente – feita por alguém que se sentiu tocado em algum lugar que está
por atrás desta atitude; isto é, alguém reage introvertida ou extrovertidamente
porque algo lhe aconteceu. Assim, uma criança – ou adulto – tocada em um ponto
especialmente sensível de seu ser pode reagir de um modo ou outro. Esta reação
vai depender de múltiplos fatores: o “quantum” ele próprio tem de uma tendência
natural para a introversão ou a extroversão, a aceitação social de uma ou outra
possibilidade, um momento especial pelo qual passa essa pessoa, etc.
Por exemplo, alguém tocado em sua sensibilidade à rejeição – e, para este
alguém, esta é, em nosso exemplo, uma sensibilidade bem marcada, especial,
idiossincrásica – pode escolher: (1) se retirar do mundo, eremetizar-se,
entristecer, deprimir ( como que dizendo para si mesmo: “não preciso de ninguém
especialmente, não corro mais o risco de ser abandonado) ou (2) “sair para a
balada” todas as noites, socializar-se excessivamente, sem contato com o que ou
quem realmente deseja, euforizar-se ( como dizendo: “não preciso de ninguém
especialmente, não corro mais o risco de ser abandonado). Claro que estamos, de
certa forma, simplificando algo mais complexo apenas para compreender melhor a
idéia central. Usamos a expressão “de certa forma” porque é, de fato, uma
simplificação, porém, não um exemplo inverossímil. A simplificação corre por
conta de que não somos especialmente sensíveis a apenas uma circunstância, e
sim a um leque, um complexo de sentimentos.
Se usarmos uma das duas possibilidades – a (1) ou a (2) do parágrafo anterior –
para esquecer o que nos aconteceu, provavelmente, estaremos seguindo –
construindo – uma rota de confusão, mal-entendidos e mal estar,... incluindo
mal estar físicos, isto é, a doença.
Porém, se nos recolhemos ou nos encontramos com outras pessoas – com o mundo –
sem perder contato com nossa dor, nossa ferida, nossa sensibilidade essencial,
sem negá-la, sem tentar esquecer sua existência, isto é, deixando a ferida
limpa, não infeccionada, então, temos uma boa chance de estarmos, de verdade,
cuidando bem desse recanto sensível de nosso ser. Deste modo, estaremos
conhecendo esse lugar que, de fato, nos identifica como ser humano e um ser
humano singular – pois nenhum outro terá o mesmo complexo de sensibilidades
arranjado como naquele ser. Aceitando-o como parte inerente a nós mesmos
estaremos legitimando nossa sensibilidade e, deste modo, cada vez mais,
aprendendo a lidar melhor com ela.
Uma criança que é percebida, por um de nós, como “não legal” está escolhendo
uma via que nos perturba, incomoda, mas que, para ele, talvez tenha sido, e
talvez ainda seja, a única escolha vislumbrada e mesmo a única possível. Uma
via que lhe alivia – porém ilusoriamente – a dor que ela mesma não tem
consciência. A dor negada, esquecida, mas que continua, em um nível muito
profundo e sutil, a ser sentida.
Assim, uma criança “não legal”, não é aquela bagunceira, brigona, encrenqueira;
a criança “legal” não é aquela quietinha, boazinha, certinha e obediente.
Ambas, podem estar realizando escolhas inadequadas – reativas, aprisionadas –
ou adequadas – ativas e ajustadas a si próprias.
Se quisermos, de fato, dar algum apoio às crianças, talvez um caminho seja
tentar identificar a dor, o ponto de sensibilidade, a sensibilidade pessoal de
cada uma para que, compreendendo e respeitando este lugar, possamos, não apenas
não tocar nessa ferida, mas, principalmente, fornecer campo para que a criança
possa reorganizar, ela mesma, sua maneira de reagir, escolher novos caminhos,
passando então a agir de outro modo, de uma maneira mais ajustada consigo mesma
e menos influenciada pelo meio em que vive; isto é, verdadeiramente autônoma.
Este campo é, necessariamente, um campo amoroso.
Alexandre Cavalcanti
Cumuruxatiba, abril/2008

A Vila-Escola é uma experiência de educação comunitária, libertária, democrática, atenta à voz de cada criança, à liberdade de expressão, ao processo de individuação, à construção de uma sociedade justa e sem preconceitos. A Vila-Escola pretende, um dia, se constituir como escola formal, vivendo, livre, seu próprio desenvolvimento.
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