Nestes
últimos dias, dias de reinício de atividades da Vila-Escola, conversando, aqui
e ali, com educadores, me percebi, mais do que sempre, pensando em alguns temas
– dois principalmente: (1) o que é ser educador; (2) o campo de acolhimento das
meninas e meninos, o campo de mater-paternagem, o campo organizacional.
Lembrei,
então, do texto que lemos no domingo durante o almoço-encontro de alguns dos
educadores. O texto, um pouquinho adaptado, é de Isak Dinensen, dinamarquesa
que viveu muitos anos na África colonizada.
Vamos
a ele: “... Nunca a vi (a professora) zangada. Professores e pedagogos lhe
teriam invejado esta grande qualidade inspiradora que emanava. Em suas mãos a
ação de educar não era uma compulsão ou uma obrigação penosa, mas uma espécie
de grande e nobre conspiração da qual seus pupilos tinham o privilégio de
participar. A casinha era, para eles, uma verdadeira escola de magia branca e
os estudantes, que caminhavam e corriam por ali, assemelhavam-se a jovens
feiticeiras e feiticeiros que aprendiam com a convicção embutida de que, ao fim
do curso, seriam senhores de um grande poder”.
Por
partes: “... qualidade inspiradora que emanava (do adulto)...” – de fato, creio que esta é uma, se não “a”,
qualidade que precisa estar presente no pano de fundo de todo educador, de toda
pessoa que se relaciona com uma criança. Digo “pano de fundo”, no sentido de
que não pode faltar neste cenário; precisa estar sempre lá, presente,
onipresente, mesmo que, muitas vezes, não chame atenção dos atores que
participam da ação propriamente dita. Inspirar, não cobrar, uma criança.
Conversar sobre algum assunto sem impor uma determinada conclusão. Apresentar
sem afirmar qualidades, deixar experimentar, perceber o gosto, a definição da
criança. Perceber o ritmo desta criança, daquela outra. Inspirar
possibilidades, expirar bem-estar.
“...
a ação de educar não era compulsiva ou uma obrigação penosa...”; quanto a
“obrigação” nem, creio, ser necessário estender muito. Talvez valha a pena
lembrar que obrigação tende mesmo a ser penosa em quase qualquer circunstância.
Por que “quase qualquer” e não apenas “qualquer”? Porque para alcançar uma meta
desejada muitas vezes atravessamos caminhos pouco agradáveis ou confortáveis.
Contudo, a meta ansiada serve como inspiração e fonte de energia e mesmo de
coragem para seguir em frente. Além disto, sabemos que, ao fim e ao cabo, deste
trabalho mais penoso encontramos o prazer do desejo alcançado. Já quanto a
“compulsão” vale um cuidado. Um educador deve realmente se despir de toda forma
de compulsão, de assenhoramento sobre o que é melhor para alguém. Muitas vezes
temos a compulsão de dar respostas rápidas demais, dizer, por exemplo, “não,
não, não” rápido demais. Somos, nós adultos, os reis e rainhas das atitudes
viciadas, compulsivas portanto. Fomos treinados assim, desconectados de nós
mesmos.Educados, podemos dizer, no sentido avesso a nós mesmos, educados justo para
não manifestar nossa mais profunda sensibilidade. Fomos treinados, via de
regra, a não ser quem somos verdadeiramente, treinados a tomar atitudes
padronizadas, da moda, compulsivas, sem reflexão ou sequer contato sobre se tais
atitudes nos agradavam de fato. Já ouvi uma mãe dizer, quando chamada atenção
sobre estar reclamando que um filho não estava fazendo algo que ela – quando
criança – detestava fazer, que estava “cumprindo o papel de mãe”, assim, sem
nenhum senso minimamente crítico, como esquecida do mal estar que, um dia, já
havia sentido. Esta mulher – poderia ser um homem, claro – estava viciada,
esquecida de si mesma, enquadrada numa sistemática de vida (vida?) que,
provavelmente, lhe fornecia algum tipo de segurança. Este é um trabalho
importante que cada educador precisa aceitar: romper com seus vícios. E vícios
não surgem à toa, surgem com boas e sensíveis motivações; de fato,
hipersensíveis motivações. O vício é uma maneira de evitar o contato com uma
sensibilidade dolorosa, ameaçadora para aquela pessoa. Uma dor que é daquela
pessoa, não é de outra: cada um se vicia por motivos diferentes, pessoais. O
que é duro de suportar para um pode não ser para outro – daí nunca menosprezar
a dor do outro é sempre um ótimo caminho. O dito popular – “bebe pra esquecer”
– é bem esclarecedor do que estamos dizendo. A pessoa se vicia – no álcool,
neste caso – para esquecer o que lhe dói. Assim, também fica claro que, ao
tentar evitar uma dor, esta pessoa cria um sofrimento – uma dor alternativa que
tira o foco da dor real. A Vila-Escola é, portanto, uma escola para cada adulto
que ali está. Somos, a cada instante, confrontados com nós mesmos, com nossas
compulsões, nossos ranços.
“...
uma grande e nobre conspiração...”; de fato, é nisto que estamos metidos.
Estamos conspirando contra um sistema organizado e cristalizado; um sistema que
não deseja de modo algum qualquer tipo de alternativa; um sistema reativo,
reacionário, que fará todo o possível para anular qualquer açãoque se apresente
frente a seus dogmas, mesmo que esta ação seja apresentada apenas como proposta
a quem desejar escolher outra hipótese. Os dogmas deste sistema,
principalmente, ensinam que devemos separ a forma do conteúdo, que privilegiar
a forma ao conteúdo, separar o corpo dos sentimentos e desejos mais legítimos –
aliás, isto é feito tão precocemente que uma grande parte dos seres humanos – a
maioria – sequer entram em contato com seus desejos mais legítimos, sua
centralidade única e intransferível. Enfim, um sistema que racha a unicidade do
ser, que o separa de sua centralidade pessoal e intransferível. Por isto, é
importante tomar cuidado para não agir apenas trocando os sinais e, assim, impor
nossos desejos que, neste caso, se transformarão também em dogmas compulsivos e
ditatoriais.
“...
escola de magia branca... onde se ganha a convicção de que somos senhores de um
grande poder...”. Um poder que, longe de impositivo, é acolhedor, é solidário,
é colaborativo. Um poder que apenas é
a possibilidade que cada um tem a oferecer ao mundo, à vida. Uma escola que
ensina a conjugar o verbo poder: eu posso, você pode, ele pode, nós podemos...Uma
escola onde se vive a magia do “sou quem sou” e, por ter o direito de
manifestar-me assim, sendo quem sou, acolho e me associo a quem é você, este
outro que comunga comigo da vida maior, da vida abundante que vemos quando nos
deparamos com a diversidade dos peixes, com as mangueiras, os coqueiros e
pitangueiras de Cumuruxatiba. Uma vida na qual a materialidade se manifesta,
essencial, no gosto da fruta, onde não há conflito entre o visível e o
invisível, entre corpo e alma (consciência, psique, espírito, ou o nome que
você sinta melhor), onde não há competição, onde existe o prazer de jogar o
jogo livre da vida, onde não há pirâmide de poder, onde não há vencido ou
vencedores, onde apenas existe entrelaçamento de possibilidades – o poder que
devemos reconhecer e manifestar, o poder da espécie humana, o poder de cada ser
humano.
No
início desta mensagem falei sobre dois temas. O segundo, que, se fosse colocar
em ordem de importância, deveria ser o primeiro, porém, com menos frequência do
que supomos existem ordens de importância, poistudo está interligado. Posto
isto, o segundo – que não é segundo nem primeiro – diz respeito ao campo de
acolhimento das crianças, isto é, nós, os adultos, os educadores. O campo onde
as crianças irão conhecer a si mesmas, ao outro, onde irão se organizar consigo
mesmas e também junto ao outro.
Antes,
uma pequena reflexão: o que é mesmo educar? Frequentemente, quando se trata do
termo “educar”, fala-se,e atua-se, no sentido de ensinar regras ou
conhecimentos às crianças. Entretanto, via de regra, tais regras não foram
acordadas com elas. Foram discutidas, deliberadas por outras pessoas, adultos
muitas vezes com ótimas intenções. Assim deliberadas são impostas aos pequenos.
Do mesmo modo, quando se trata de passar conhecimentos os adultos, cientistas,
por um lado, estudam e consideram as possibilidades de apreensão da meninada, estudam
o desenvolvimento de sua capacidade orgânica, cerebral, estabelecem idades mais
ou menos adequadas para aprender este ou aquele tema; porém, não levam na mesma
consideração seu desejo de estudar justo aquele ponto, justo naquele momento.Assim,
o ponto de matemática é oferecido às 13 horas da segunda-feira e da
quarta-feira, nas turmas de 4ª série – hora que o João, garoto inteligente e
curioso, tem muito sono! E o João é repreendido ou, pior, desqualificado como
preguiçoso e pouco inteligente. Joãozinho, muito provavelmente, ou vai aceitar
este rótulo, esquecendo sua real vivacidade ou vai se desdobrar para não
dormir, usar uma poderosa energia para se manter acordado e, assim, esquecer
sua real vivacidade.
Também
falamos em educação quanto às regras de convivência social. Regras estas também
frequentemente padronizadoras de comportamentos – e que, portanto, muitas
vezes, curvam, dobram o eixo natural de algumas pessoinhas que seguem tortas,
cheia de dores, vida a fora. Como uma plantinha forçada a seguir uma
determinada direção que agrada ao dono do jardim. A natureza da plantinha não
será jamais conquistada – a roseira seguirá roseira, mesmo que sofrida –;
entretanto, no caso dos humanos, os meninos e meninas podem esquecer muito
profundamente o que, muitas vezes, sequer chegaram conhecer. Muitas vezes não
chegaram a conhecer, porém as emanações – inspiradoras, mas, agora, ameaçadoras
– desta fonte seguem presentes e poderosas. Quanto desconsideramos esta fonte
primordial e pessoal mais nos sentimos mal, tristes, violentos, cruéis,
acovardados, doentes, deprimidos, perversos. E assim construímos nossas
sociedades, nossas cidades – grandes ou pequenas.
Para
mim, educar é ajudar uma criança ser quem ela é. Educar é observar a criança
sem preconceitos. Educar é procurar entender o mundo como aquela criança – não
outra – o sente e entende. Educar não é dizer o que é melhor para a criança, é
aprender o que é melhor para a criança. Educar é dar campo para a criança
manifestar-se e organizar-se livremente. Educar é cuidar para que uma criança
não se machuque ao viver suas experiências – experiências que vão lhe ensinar
sobre ela mesma e sobre o mundo que a envolve. Educar é responder, na medida de
seu conhecimento, o que a criança pergunta, procurar ampliar a resposta junto
com ela, aprender ao mesmo tempo que ela, aprender com ela, aprender dela,
conhecer mais de você através dela.Educar é mostrar sua própria e sensível
humanidade. Educar é errar, reconhecer o erro, pedir desculpas, reorganizar, da
melhor maneira possível, o mal feito. Educar é se revelar sem zonas obscuras,
ambíguas, sombrias, para cada criança.
Amit
Goswami, físico quântico, ensina que um cientista de mente fechada interfere no
resultado de sua experiência, de sua observação. Um educador não pode ter nem a
mente nem o coração fechados, não deve jamais ser cético em relação a alguém, a
uma criança que seja. A criança, frente a esta hostilidade – mesmo que
disfarçada, vestida numa roupagem de “boa educação” – vai desviar suas
possibilidades, escondê-las, esquecê-las. Este é o poder do adulto.
Na
formação de um grupo que pretende acompanhar e cuidar do desenvolvimento de
meninos e meninas as ideias devem estar muito afinadas. Porém, mais do que as
ideias, os ideais devem estar muito afinados, as intenções devem estar muito
conscientes. Este trabalho, de afinamento, é o grande desafio para os adultos
que estão na Vila-Escola. Aqui vamos nos confrontar com nós mesmos, cada um
consigo e contar com o outro ao seu lado. Um outro tão sensível quanto ele
mesmo, mas único em sua sensibilidade. Um outro que tem sugestões únicas por
nascerem de sua fonte – que é única –, e que pode trazer a tona estas
sugestões, não como as imposições com as quais, gentil ou violentamente, fomos
“educados”, mas como um alimento a se juntar aos outros que compõem a mesa
deste possível banquete.
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